Luís Vaz de Camões
Canto IV
Joane, a quem do peito o esforço crece,Como a Sansão Hebreio da guedelha,
Posto que tudo pouco lhe parece,
Cos poucos do seu Reino se aparelha;
E, não porque conselho lhe falece,
Cos principais senhores se aconselha,
Mas só por ver das gentes as sentenças,
Que sempre houve entre muitos diferenças.
Não falta com razões quem desconcerte
Da opinião de todos, na vontade;
Em quem o esforço antigo se converte
Em desusada e má deslealdade,
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
Que a própria e natural fidelidade.
Negam o Rei e a Pátria e, se convém,
Negarão (como Pedro) o Deus que têm.
Mas nunca foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Álveres; mas antes,
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Àquelas duvidosas gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão na espada, irado e não facundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo:
– Como? Da gente ilustre Portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?
Como? Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda parte,
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?
Como? Não sois vós inda os descendentes
Daqueles que, debaixo da bandeira
Do grande Henriques, feros e valentes,
Vencestes esta gente tão guerreira,
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que tiveram?
Com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu filho sublimados,
Senão cos vossos fortes pais e avôs?
Pois se, com seus descuidos ou pecados,
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
Torne-vos vossas forças o Rei novo,
Se é certo que co Rei se muda o povo.
Rei tendes tal que, se o valor tiverdes
Igual ao Rei que agora alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem já desbaratastes.
E se com isto, enfim, vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a vosso vão receio,
Que eu só resistirei ao jugo alheio.
Eu só, com meus vassalos e com esta
(E dizendo isto arranca meia espada),
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada.
Em virtude do Rei, da pátria mesta,
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei não só estes adversários,
Mas quantos a meu Rei forem contrários!»
Bem como entre os mancebos recolhidos
Em Canúsio, relíquias sós de Canas,
Já pera se entregar quási movidos
À fortuna das forças Africanas,
Cornélio moço os faz que, compelidos
Da sua espada, jurem que as Romanas
Armas não deixarão, enquanto a vida
Os não deixar ou nelas for perdida:
Destarte a gente força e esforça Nuno,
Que, com lhe ouvir as últimas razões,
Removem o temor frio, importuno,
Que gelados lhe tinha os corações.
Nos animais cavalgam de Neptuno,
Brandindo e volteando arremessões;
Vão correndo e gritando, a boca aberta:
– «Viva o famoso Rei que nos liberta!»
Das gentes populares, uns aprovam
A guerra com que a pátria se sustinha;
Uns as armas alimpam e renovam,
Que a ferrugem da paz gastadas tinha;
Capacetes estofam, peitos provam,
Arma-se cada um como convinha;
Outros fazem vestidos de mil cores,
Com letras e tenções de seus amores.
Com toda esta lustrosa companhia
Joane forte sai da fresca Abrantes,
Abrantes, que também da fonte fria
Do Tejo logra as águas abundantes.
Os primeiros armígeros regia
Quem pera reger era os mui possantes
Orientais exércitos sem conto
Com que passava Xerxes o Helesponto;
Dom Nuno Álveres digo: verdadeiro
Açoute de soberbos Castelhanos,
Como já o fero Huno o foi primeiro
Pera Franceses, pera Italianos.
Outro também, famoso cavaleiro,
Que a ala direita tem dos Lusitanos,
Apto pera mandá-los e regê-los,
Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.
E da outra ala, que a esta corresponde,
Antão Vasques de Almada é capitão,
Que despois foi de Abranches nobre Conde;
Das gentes vai regendo a sestra mão.
Logo na retaguarda não se esconde
Das Quinas e Castelos o pendão,
Com Joane, Rei forte em toda parte,
Que escurecendo o preço vai de Marte.
Estavam pelos muros, temerosas
E de um alegre medo quási frias,
Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e romarias.
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das imigas companhias,
Que com grita grandíssima os recebem;
E todas grande dúvida concebem.
Respondem as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes e atambores;
Alférezes volteiam as bandeiras,
Que variadas são de muitas cores.
Era no seco tempo que nas eiras
Ceres o fruto deixa aos lavradores;
Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto;
Baco das uvas tira o doce mosto.
Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
Quantos rostos ali se vêm sem cor,
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
É maior muitas vezes que o perigo.
E se o não é, parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro imigo
Faz não sentir que é perda grande e rara
Dos membros corporais, da vida cara.
Começa-se a travar a incerta guerra:
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba e encontra e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaxo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co as duras armas tudo atroam.
Recrecem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
Eis ali seus irmãos contra ele vão
(Caso feio e cruel!); mas não se espanta,
Que menos é querer matar o irmão,
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes (caso estranho),
Quais nas guerras civis de Júlio [e] Magno.
Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algũas vezes
Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo lião
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tutuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso;
Com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrecem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.
Sentiu Joane a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo corria e via e a todos dava,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida lioa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos furtara,
Corre raivoso e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
– «Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na nossa lança!
Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai, verdadeiros Portugueses!»
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.
Porque eis os seus, acesos novamente
Dũa nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre qual mais, com ânimo valente,
Perigos vencerá do Márcio jogo,
Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;
Rompem malhas primeiro e peitos logo.
Assi recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.
A muitos mandam ver o Estígio lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.
O Mestre morre ali de Santiago,
Que fortíssimamente pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago,
Outro Mestre cruel de Calatrava.
Os Pereiras também, arrenegados,
Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.
Muitos também do vulgo vil, sem nome,
Vão, e também dos nobres, ao Profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo.
E por que mais aqui se amanse e dome
A soberba do imigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derribada ós pés da Lusitana.
Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê e de seu propósito mudado.
O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.
Alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso e sitibundo,
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do Profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas,
Sem filhos, sem maridos, desditosas.
O vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas, despois, e romarias,
As graças deu a Quem lhe deu vitória.
Mas Nuno, que não quer por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas,
Pera as terras se passa Transtaganas.
Ajuda-o seu destino de maneira
Que fez igual o efeito ao pensamento,
Porque a terra dos Vândalos, fronteira,
Lhe concede o despojo e o vencimento.
Já de Sevilha a Bética bandeira,
E de vários senhores, num momento
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa,
Obrigados da força Portuguesa.
Destas e outras vitórias longamente
Eram os Castelhanos oprimidos,
Quando a paz, desejada já da gente,
Deram os vencedores aos vencidos,
Despois que quis o Padre omnipotente
Dar os Reis inimigos por maridos
Às duas Ilustríssimas Inglesas,
Gentis, fermosas, ínclitas princesas.
Não sofre o peito forte, usado à guerra,
Não ter imigo já a quem faça dano;
E assi, não tendo a quem vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
Este é o primeiro Rei que se desterra
Da pátria, por fazer que o Africano
Conheça, pelas armas, quanto excede
A lei de Cristo à lei de Mafamede.
Eis mil nadantes aves, pelo argento
Da furiosa Tétis inquieta,
Abrindo as pandas asas vão ao vento,
Pera onde Alcides pôs a extrema meta.
O monte Abila e o nobre fundamento
De Ceita toma, e o torpe Mahometa
Deita fora, e segura toda Espanha
Da Juliana, má e desleal manha.
Não consentiu a morte tantos anos
Que de Herói tão ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
Do Céu supremo quis que povoasse.
Mas, pera defensão dos Lusitanos,
Deixou Quem o levou, quem governasse
E aumentasse a terra mais que dantes:
Ínclita geração, altos Infantes.
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